terça-feira, 31 de maio de 2016

"E só de imaginar o acaso colaborar com aquela poesia, ela sorria." ____________________ ____ Yohana Sanfer

É preciso varrer as poeiras da alma para que a paz faça morada.

Noemi Prates
Vem cá. Vou te contar. O nome disso é tempo. Sim, tempo. O tal senhor tão bonito, compositor dos destinos. Essa coisa que ninguém se atreve a prever ou explicar. Esse calendário correndo acelerado é o tempo. Essa noite urgente virando dia, atropelando os planos? É ele. Esse piscar de olhos que transforma tudo? Também. E esse vendaval sem anunciação tirando as levezas e as certezas do lugar é o que ele sabe fazer de melhor. Sem consultas, sem acordos. Essa poeira que sobe e fica no caminho é efeito do que é feito o tempo. De pressa, de desordem, de eternidades, de esquecimento, de seguir em frente. Varal confuso depois da tempestade. Tombo. Com ares de castigo e deixas de aprendizado. Treino que não nos prepara pra nada, mas exige e ensina tudo. Um mestre dos bons, porém impaciente. Sem delongas e sem esperas. Faz sorrir e faz chorar. E embora nos limite com suas rédeas, permite que possamos ser, sentir, ir, voltar, mudar. Desde que não o desperdicemos. Desde que caibamos no hoje, no agora. O agora é seu traduzir. O que ele quer da gente? Bravura. Coragem. Dessas de encarar. De tentar. De cair e não se entregar. De enfraquecer mas não renunciar. Que é pra dar sentido ao transcorrer. O que fica no caminho? Um rascunho de nós. Palavras que já não nos vestem. Bagagens que já não nos servem. Fica a ternura imatura e nossas supostas convicções. Um cadinho de estrago e um tanto de quereres abandonados. Um coração em alerta e olhos bem abertos. Dói. Dói sim. Mas um curativo aqui, uma cicatriz ali e tudo não terá sido nada muito além de um susto. É. O tempo não perdoa. A boa notícia é que ele passa. E com ele, passa o aperto que bate no peito de vez em quando. Inclusive esse nó na garganta, menina. Acredita. Acredita, porque acreditando é mais fácil passar por ele também. 


Yohana Sanfer


segunda-feira, 30 de maio de 2016

Ela não sabe onde cabe. Às vezes, não cabe. Ela é de Aquario.

As raízes de Aquário são suas asas
Não é por mal que ela desaparece. Se parece que ela não se importa: isso não é, necessariamente, verdade. Em alguns casos, é. Mas normalmente o que acontece é que ela, cheia de dúvidas e anseios e mergulhada até o pescoço em tudo o que não consegue resolver, prefere erguer as sobrancelhas e mudar de assunto. Às vezes dói. Pra ela, na verdade, dói sempre. Ela não consegue ver o todo. Se apega aos detalhes. Checa. Verifica. Cutuca e analisa até ficar irritada com a sua própria mania de não ficar na superfície. Às vezes gostaria de não afundar, mas não consegue. O abismo, o buraco, o mar, a correnteza – todas essas coisas lhe são caras e atraentes e ela prefere morrer nos braços das sereias do que só molhar o pé na areia. Se preocupa tanto que não sabe se as bolsas sob os olhos são por conta das dificuldades pelas quais passa aquele amigo de longa data, ou por medo de acordar e descobrir que o mundo acabou em napalm, ou por medo do que mora dentro dela e que ela nunca quer ver sair de novo. Tem receio de se perder (e não percebe que é perdida por natureza – torta das ideias, coitada). Coleciona besteiras. Papéis antigos, embalagens coloridas. Apega-se aos que passaram pela sua vida com um amor tão avassalador que nunca pede para que eles voltem. Acredita que são lindos mesmo quando estão do outro lado do mundo, e quer que permaneçam lá se estão bem. Ela os quer bem, no final das contas – até tenta guardar rancor, mas tudo passa. Tudo é inconstância, delírio, adeus. Segura o que precisa segurar. O resto, joga ao vento. Tem mania de dizer o contrário, e pode trocar de lado no meio da conversa porque ou quer te provocar ou porque, realmente, sabe que eu nunca pensei nisso? É orgulhosa até o momento em que não precisa ser mais. Reconhece. Aceita. Às vezes se morde um pouco, quebra um vaso na parede, arrebenta um souvenir, mas: reconhece. Aceita. Se recusa quando precisa e não foge. Foge. Foge demais porque quer ser passarinha (e às vezes ela pensa que já passou da idade de querer qualquer coisa assim). Muda. É uma pessoa nova quando acorda, outra diferente quando vai dormir. Beija as mãos que lhe estendem porque acha que amor tem que ser dado assim: na palma aberta, para cima, em oferenda. Em doses que escorrem pelos dedos. Não quer nada que caiba dentro de um punho fechado. Ela não sabe onde cabe. Às vezes, não cabe.



Jota Del Rosso

A balança baixa e sobe alternada e indiscriminadamente seus pratos, razão pela qual é muito difícil compreendê-lo, especialmente quando se deixa tocar por Saturno...

Ele não sabe se vai ou se fica, mas te escreve uma carta remexendo lá dentro, enfiando as mãos nas vísceras, nas tripas, você não sabia que as coisas bonitas que ele fala vieram de dentro? Ele sabe como agradar e abrir um vinho e não vai entender nada sobre o tal quadro bizarro na parede da galeria, mas vai sorrir e acreditar em você. Vai te olhar calmo e desviar os olhos, segurar as suas mãos e você vai perguntar o que foi. Nada. Tem coisas que só fazem sentido pra libra, coisas que se a gente fosse colocar numa balança penderiam mais prum lado do que pra outro. No cinema a escolha é sua. No restaurante também. E você se irrita, talvez porque você queira que ele tome as decisões certas na vida e ele não toma, não sabe o quer, quer o mundo e quer você, mas será que dá pra ter tudo isso? Ele não sabe. No fundo, ele é só um menino perdido no meio de um monte de coisa. Por mais que ele seja galante, por mais que você ouça os horóscopos extrapolarem por aí a fama de conquistador, ele não gosta muito de múltiplos amores. O que ele busca é um ninho, talvez  confundam a busca com o fim. Nada. Se for você, ele para. Se for você, o mundo dele tá completo e não tem nada fora de casa que ele queira buscar.Vai ser você e ponto. Ele é de libra quando bota uma playlist pra tocar e deita na rede, quando te puxa pra dançar de pés descalços, quando te pergunta se você pode ir com ele descobrir o que fazer da vida. Ele é de libra até quando aposenta o signo pra ser seu.




Daniel Bovolento

sexta-feira, 27 de maio de 2016

A mulher é o milagre da criação. Amaldiçoado aquele que o milagre despedaça. _____________________ Guilherme Antunes


O amor dá significado à mulher.
E só a mulher dá significado ao amor.
Assim, a própria mulher é quem concede sentido ao homem e,



por consequência, ao mundo.

A perversidade dissolve esta costura,
deixando-nos como herança a falta de sentido de todas as coisas.
Sem amor, desaprendemos a ser.





Guilherme Antunes

"Ela tem a suavidade de tempos bons, a serenidade que toda alma precisa." — Dois tons de amor.

Arquivo Pessoal
"Foi neste outono que parei para observar as folhas que caem. Silenciosas, descem e dançam no ar enquanto se despedem da vida e vão ao encontro do chão. É sempre tão lento e tão rápido ao mesmo tempo, e tão bonito e doloroso, morte e vida aliadas — por que não? Folhas caem para outras nascerem, isso é envelhec(s)er. (Sinto que o mesmo acontece dentro de mim) Vejo folhas secas caídas e brotos nas árvores, e o outono ainda nem chegou ao fim."

Daniela Lusa

terça-feira, 24 de maio de 2016

"O resto da vida parece pouco tempo para quem carrega dentro de si um amor de verdade." ________________________ Erick Tozzo


"Coração é espaço delicado... "

Sonie Marie
Ando na beira do vento. Onde o azul faz silêncio da vida. Escuto o estrondo do vazio. Fui melhor preparado para olho. Inclino o ouvido para percebimentos. Não tenho invencionices de adivinho. Sou comprometido com a folha que cai. Então escuto. As coisas de mim são promessas de saber. Saber alegria em bocas sãs. Saber aguamento de distâncias. Saber um maestro lá em cima de pompa e nuvens. Saber um passo. E saber mais um. Saber que o amor não se sabe. O amor me inicia pueril, me forma idiota. Incorporo tal honraria. Fiz-me pleno de saber cumprir. 

Dan Cezar

sábado, 21 de maio de 2016

Que a vida me traga todo o amor que sempre desejei!

Moça pequena, cultiva flores na tua alma.
— Nina
O amor chegou depois, quase no fim da esperança. O amor chegou quando não sobraram mais individualidades, quando abri meu peito ao mundo e disse: "entre". O amor chegou quando as emoções penetraram no meu intimo e desnudaram minha alma. O amor chegou quando meus olhos passaram a ver além do tangível e sentiram o precipício por trás de outras retinas. O amor chegou depois que compreendi a rotina, aceitei a falta de sono, aprendi a ter paciência com as crianças. O amor chegou quando eu comecei a me despertar para as flores e compreender que um jardim é válido se meus vizinhos podem vê-lo. O amor chegou quando deixei o riso ser agudo. O amor chegou quando aumentei o volume na minha música predileta - e dancei. O amor chegou quando esqueci de colocar o pijama para dormir e apaguei no sofá, distraída em governar meus próprios limites. O amor chegou quando eu passava um café sem pressa numa manhã longa de domingo. O amor chegou depois que não me culpei por perder horários. O amor chegou junto com a desordem, me ensinando a desaprender para aprendê-lo. O amor chegou quando tudo em mim havia sofrido partida. O amor não chega quando ainda temos razão.

terça-feira, 17 de maio de 2016

"E se isso me define, então sou a dor que sabe esperar".

Arquivo Pessoal
"Outro dia me pus a pensar que sou semelhante
às mulheres da literatura de Érico Veríssimo,
as mesmas que enquanto os homens ocupavam da guerra,
elas se ocupavam do tempo e do vento.
Eu não tenho muitas definições a meu respeito;
apenas respeito a dor de cada hora,
a esperança de cada momento.
E se isso me define,
então sou a dor que sabe esperar".


[Padre Fábio de Melo, do Livro Mulheres de Aço e de Flores]

sábado, 14 de maio de 2016

Os sentimentos são como o mar: seduzem e depois podem afogar. De qualquer forma, a regra é clara: o que me oferecerem, eu ofereço três vezes mais. _______________________ (Suzana Moreira)i)

Preciso dizer-te que não sou o tipo de pessoa que gosta de receber flores ou declarações de amor quilométricas, flores são bem vindas, claro. Mas fazer-me sorrir já é o suficiente para mim. Por mais controle que eu tente ter, perderei o controle em alguns momentos. Eu vou observar o teu jeito, as tuas reações, e como tu falas comigo, e vou descobrir o exato momento em que tu estiveres a mentir. Eu vou notar o jeito com que tu falas dos teus ou das tuas ex’s, e dos erros que tu cometeste, a forma como tu falas com os teus pais, e o jeito como encaras a vida. Eu gosto da verdade bem dita. Tu precisas saber também que, quase sempre, eu não acordo com boa disposição, e que, algumas vezes eu fico sem paciência para me importar. Em algum momento eu vou-me esquecer de te ligar porque a correria do meu dia não me permitiu. Se tu procuras alguém perfeita, provavelmente esse alguém está longe de ser eu. Gostar de mim não é um processo fácil, e o meu processo de gostar de alguém exige muita paciência. Não consigo lidar com metades. Eu sou um poço de expectativas, vai dar trabalho para me surpreenderes. – Aliás, todo o mundo alimenta expectativas de vez em quando. E, acredita, isso não é uma qualidade. Odeio monotonia, mas por vezes gosto de ficar momentos a sós, porque inexplicavelmente, isso me faz bem. Eu não me vou perder por ti, não vou implorar para que fiques quando a tua vontade for ir embora. Não esperes também que eu te peça atenção e afeto, porque isso é algo que só dá quem tem e quem quer. Sou um exagero em pessoa, amo incondicionalmente, e quando isso acontece, eu luto com todas as minhas forças para que dê certo, mas se tu não fizeres a tua parte, fica sabendo que eu não permaneço onde não existir reciprocidade.  Eu gosto de fazer bem, então peço-te que me faças bem também. Tu precisas saber que eu não vou sorrir para o teu melhor amigo se ele for chato, nem vou engolir o teu colega ou a tua colega do trabalho se ele ou ela estiver realmente a dar em cima de ti. Tu precisas saber que eu não vou declarar-me para ti todas as manhãs, que não vou conseguir dormir todos os dias de conchinha porque isso sempre me deu calor. Odeio comparações. Às vezes sou uma pessoa complicada, cheia de problemas e manias irritantes. Fica se quiseres, mas entende: eu amo demais, confio demais, sinto demais. Mas uma decepção é capaz de mudar todo o ciclo do que sinto. Sou 8 ou 80. Sou sim ou não, mas nunca talvez. Com a mesma intensidade que posso amar, confiar e sentir, posso também odiar, desconfiar, e esquecer.


Andre Costa - Adaptado

sexta-feira, 13 de maio de 2016

"Não quero lembrar. Fico triste lembrar das coisas que se foram e não voltam. Agora já passou. Sinto saudade, quando penso que podia ter sido diferente." ___________ Caio Fernando Abreu.



Esses dias ouvi que 'as mulheres não lidam bem com a rejeição', ai fiquei pensando, existe alguém, homem ou mulher, que lide bem com isso? Ser rejeitado, principalmente por quem se ama, é um dos sentimentos mais devastadores que existem. Não existem argumentos lógicos que sejam capazes de atenuar a tristeza que invade, a sensação de não termos sido suficientemente bons ou a impotência que acompanha o desamor. Por mais que a razão nos diga que 'amar é tão natural quanto desamar', que a rejeição não tem relação o que somos ou fizemos, que separações fazem parte da vida, que pessoas certas se encontram em momentos errados e outras tantas verdades, ainda assim essas verdades não diminuem o sofrimento de quem ficou pra trás, tampouco amenizam a sensação de abandono. É preciso que se viva essa dor até o fim sem sentir culpada 'por não saber lidar'. Esse papo de gente bem resolvida não me convence. É verdade que com o tempo e a experiência a gente aprende a 'cair de pé' ou ter a certeza de que vamos superar, porque superamos outras vezes. Essa consciência nos faz mais fortes, ou menos desesperados, mas não vai diminuir a nossa dor. Pra mim quem lida bem com a rejeição não estava nem ai pra relação. Lida e bem quem não se importa, quem não gosta, quem já não sente amor. E ainda assim eu tenho duvidas, porque em menor ou maior grau, por amor ao outro ou amor próprio, ninguém gosta de ser rejeitado. E ninguém precisa ter medo de doer ou acreditar que exista um jeito 'bem resolvido' de lidar com a dor. Rejeição dói, dói e ponto.

Andréa Beheregaray.

Da série, 'Perguntas no Divã'.

“Amanhã fico triste… amanhã!Hoje não… Hoje fico alegre! E todos os dias, por mais amargos que sejam, eu digo: Amanhã fico triste, hoje não…” __________________________________ (Poema encontrado na parede de um dos dormitórios de crianças do campo de extermínio nazista de Auschwitz)

Nas minhas memórias afetivas 'quinta-feira' é o dia mais bonito da semana. Sem os grandes eventos e os afetos estrondosos dos finais de semana, a quinta-feira é feita das sutilezas que marcam a grandeza do cotidiano. Dia de afetos largos e gestos acolhedores. De rever o já visto e se encantar outra vez. Quinta-feira é um dia simples, é dia de bem-me-quer, tem jeito de bem querer.

Quinta-feira é uma margarida.

Andréa Beheregaray.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

“Há uma santidade nas lágrimas. Não são marca de fraqueza, mas de força. São mensageiras da dor incontrolável e de amor indescritível.” ______________________________ Washington Irving

Daqui, ando com um choro pouco religioso. Meu choro é calado, mora apertado no peito. Tem momentos que eu o sinto revirando-se desajeitado, procurando um lugar mais confortável para ficar. Porém não escorre. É choro acrobata, conhece a complexidade da vida, contorce-se, mas não fica onde deveria estar e não encontra o caminho do rio onde as lágrimas vão de encontro ao sol. Somos amigos antigos e ele se lembra de cada dia em que a vida o fez pulsar e aumentar seu volume. Ele é sensível, é poeta que rima dentro de mim. Às vezes luto para que ele se vá, encontre as portas do olhar que lhe abrirão horizontes, mas meu choro é confuso, teme o abismo da liberdade que a expressão do sentimento proporciona. Ah, choro carente, não percebe que sua gota é semente, que seu sal é força e que sua queda pode ser voo? Mas hei de me programar e guia de um choro perdido serei. E chorarei. Por três dias e três noites em tempestade e calmaria. Até que a pressão termine, até que o coração se acalme, até que a vida se lembre que ser sensível para fora também é uma opção. Um dia desses, ainda viro mar.


Josie Conti


sexta-feira, 6 de maio de 2016

A distância nos permite mensurar os espaços deixados. Por isso, partidas e chegadas são instrumentos que nos indicam quem somos, o que amamos e o que é essencial para que a gente continue sendo. _____________________________________

Olho ao meu redor e descubro que as coisas que quero levar não podem ser levadas. Excedem aos tamanhos permitidos. Já imaginou chegar ao aeroporto carregando o colchão para ser despachado? As perguntas são muitas… E se eu tiver vontade de ouvir aquela música? E o filme que costumo ver de vez em quando, como se fosse a primeira vez? Desisto. Jogo o que posso no espaço delimitado para minha partida e vou. Vez em quando me recordo de alguma coisa esquecida, ou então, inevitavelmente concluo que mais da metade do que levei não me serviu pra nada. É nessa hora que descubro que partir é experiência inevitável de sofrer ausências. E nisso mora o encanto da viagem. Viajar é descobrir o mundo que não temos. É o tempo de sofrer a ausência que nos ajuda a mensurar o valor do mundo que nos pertence. E então descobrimos o motivo que levou o poeta cantar: “Bom é partir. Bom mesmo é poder voltar!” Ele tinha razão. A partida nos abre os olhos para o que deixamos. A distância nos permite mensurar os espaços deixados. Por isso, partidas e chegadas são instrumentos que nos indicam quem somos, o que amamos e o que é essencial para que a gente continue sendo. Ao ver o mundo que não é meu, eu me reencontro com desejo de amar ainda mais o meu território. É consequência natural que faz o coração querer voltar ao ponto inicial, ao lugar onde tudo começou. É como se a voz identificasse a raiz do grito, o elemento primeiro. Vida e viagens seguem as mesmas regras. Os excessos nos pesam e nos retiram a vontade de viver. Por isso é tão necessário partir. Sair na direção das realidades que nos ausentam. Lugares e pessoas que não pertencem ao contexto de nossas lamúrias… Hospitais, asilos, internatos  Ver o sofrimento de perto, tocar na ferida que não dói na nossa carne, mas que de alguma maneira pode nos humanizar. Andar na direção do outro é também fazer uma viagem. Mas não leve muita coisa. Não tenha medo das ausências que sentirá. Ao adentrar o território alheio, quem sabe assim os seus olhos se abram para enxergar de um jeito novo o território que é seu. Não leve os seus pesos. Eles não lhe permitirão encontrar o outro. Viaje leve, leve, bem leve. Mas se leve.

Fonte: Portal Raizes

É preciso ter a dor de sentir que a vida não tem roteiro. Na vida não existe nada seguro. Quem gosta de abismos tem que ter asas. ______________________ Antônio Abujamra.

- Quer um conselho?
- Hum.
- Esquece o chão.

Pedro Antônio de Oliveira.
A dor não parte de nós arrancando-a à força de dentro do peito. A dor não se retira com simpatia, convite, súplica ou reza braba. A dor não se convence por qualquer conversa ou estratégia de fuga. Atalhos não são caminhos. A dor é grau de realidade a convocar-nos, empurrando-nos para fora das habituais zonas de conforto. A dor grita-nos verdades sem conveniências ou filtros de entendimento. Celebra seu ciclo para então em nós se despedir, desalojando-se somente quando nossa luz retorna de viagem, trazendo na bagagem inevitável amadurecimento. A dor se dispensa por sua própria conta, pelo cansaço em ser dor e não outra coisa. Devemos, assim, permitir que o tempo dissolva seu viço em nosso céu e desencrave sua raiz do nosso chão, deixando-nos finalmente expostos aos recomeços. Preciso é exercitar equilíbrio com paciência e resignação, a manter-nos uma vez mais em pé e continuarmos, ainda que mancos e desajeitados, nos primeiros novos passos nossos. Preciso é juntarmos os pedaços que ainda doem e no amor próprio voltarmos a fazer um inteiro de nós. Não é fácil: se conseguíssemos não afundar enquanto pelo medo nos agarramos às angústias e outros medos mais; se conseguíssemos praticar palavras que tão facilmente usamos para aconselharmos os outros talvez pudéssemos ver a alternância das estações que nos invernam e nos amanhecem, bem como o rearranjo das cores, dos amores, dos destinos e a inevitável vitória da cicatriz sobre as feridas. É uma pena que na maioria das vezes nos encontremos caindo dentro de nós mesmos; e desorientados na nossa lucidez, lutemos contra dores com dores maiores ainda. À beira do precipício mantemo-nos mais atentos à queda do que à glória das asas. Atentamo-nos no que seria e não no que poderá ser; projetando futuro que morreu no passado; repetindo passados com medo de errar no futuro. E boicotados, sentimo-nos um vaso rachado condenado a nunca mais matar a própria sede.

Guilherme Antunes

quarta-feira, 4 de maio de 2016

"De tudo que ela poderia ser, escolheu ser poesia." — Érica C.

"Tem algo solitário nela."

 — The Vampire Diaries 
Fui eu que inventei o amor. Eu inventei o amor. Inventei as pessoas. E daí, inventei A pessoa. O cheiro da pessoa. A voz. Mas antes, eu inventei a brisa, inventei a rima, inventei cada pedacinho de calçada atravessada no mundo dos passos que eu inventei. Eu inventei o desejo. Inventei o sorriso. Inventei o desaviso, inventei o piso em que me deitava pra olhar as estrelas que eu mesma inventei, nas madrugadas inventadas, eu peguei o nada, e fiz uma poção encantada em que tudo cabia inventar. Então eu inventei o teu nome, depois cada pedaço do teu corpo. Eu inventei a cor dos teus olhos, a força dos teus braços, eu inventei o abraço, só que dada a inventar, distraída entre risadas, eu inventei o querer, inventei o dizer, inventei cada amanhecer, depois cada anoitecer, e também inventei a paixão, caprichei na poção, dupliquei condimentos, coloquei sangue, suor, fluídos, coloquei todas as flores que eu consegui inventar, porque eu inventei um jardim, e eu inventei uma de mim, assim, uma capaz de inventar o ciúme, as urgências, tratei de inventar mais desejos, e no meu caldeirão de invenções, eu inventei o amor. Segui passo a passo as formulas do livro muito antigo que achei em Paris. Tudo escrito em uma língua pouco conhecida. Os arredores. Os becos. As historias. Cada pedra daquelas calçadas antigas foram me levando àquela pequena loja de coisas muito velhas, quase escondida, onde eu inventei de entrar. Dentro havia uma senhora muito velha, muito linda, muito erguida, muito sábia, que me sorriu e em sua língua enrolada me perguntou sem mais: _ você sabe inventar ( interrogação) Eu sorri. Disse que não. Nunca. Só umas letras. Mal entrelaçadas letras. Ela saiu. Demorou. Voltou com o tal livro nas mãos e me disse que ali havia um segredo, e que este eu poderia usar uma única vez, até acabar, o segredo de inventar. No momento certo, e eu saberia inventar o momento certo, estava autorizada a usar. E me esbaldar de inventar. Guardei o livro de inventar. Trouxe junto, por via das dúvidas, coisas que a velha tratou de me empurrar, coisas que se resolvesse inventar, iria precisar. Quase não passo na alfandega. Todas aquelas especiarias de aromas e aspectos esquisitos, asas de morcego, dentes de elefante, patas de coelhos, unhas de gatos misturados à contas e conchas e moedas, véus, muitas ervas, flores secas de todas as cores, licores, um vinho um cálice, tudo viajando comigo na frasqueira por cuidado. Muito tempo ficou guardado. Até que inventei um dia. E ele se fez. Me espantei. Inventei outro dia. E outro dia se fez. E fui inventando coisas pro dia. Coisas que amo. Sol, nuvens, corações, janelas, estrelas, portas, calçadas, esquinas, passarinhos, flores, perfumes, crianças, beijos, noite, lua, comidas, bebidas, tecidos macios, silencio, musica, luzes coloridas, sons, bichinhos bonitinhos, e tudo ia sendo inventado a contento. Só não podia parar. Era a única vez que funcionaria. Daí, sai feito doida inventando mais. Inventei casa, lojas, ruas, cidades, saudades, mas inventei de no meio de tudo, me sentir só. Tudo inventado e eu olhando as invencionices, e foi aí que eu inventei. Inventei o que vinha inventando com palavras. Inventei um alguém. Inventei. Mas já tinha inventado tanto que no meio de tudo, me danei. Inventei tanto, tantas coisas sem prestar a atenção, porque eu não inventei a atenção, nada mais quase restara das coisas raras que eu precisava pra continuar a ter o poder de inventar. No meio da minha mais cara invenção, olhei pro chão. Os frascos estavam vazios. Por todo lado, só restavam galhos daquilo que um dia me deu o dom da invenção. Estava no meio do mundo. Eu inventei todo um mundo. Inventei todos os personagens. Inventei o alguém mais perfeito que imaginara. Inventei a mim mesma, mesmo mal enjambrada, e na hora de inventar o final feliz, eu não tinha mais nada. Que grande cilada. Eu tinha sido avisada. Não fica deslumbrada. Não gasta o presente de forma estabanada. E eu, que nada, bora lá inventar a escada, eu sou uma fada, eu posso até voar. Mas nem cheguei à. Inventei até não ter mais com inventar. O que eu não inventei, sobrou em forma de dor e bagunça. Estava até agora dando uma ajeitada. Ainda me sinto enganada pela velha francesa que me fez inventar o mundo, e depois dele, me descartou. O que será da velha. Será que ainda vive, estará ainda vivendo naquela casa antiga daquela arruela escondida daquele canto inventado de Paris...Não tenho mais o que inventar. Não tenho mais como inventar. Só me restaram essas palavras pra me consolar. Me ajuntar. Ou inventar algum jeito de voltar pra Paris. Não consegui inventar o feliz. Só o final. Mas cheguei muito perto, foi mesmo por um triz.



Be Lins