domingo, 27 de maio de 2018

Só me conhecem como paz, alguns familiares e amigos. Para todo o restante, sou desassossego. ________________________ Kléber Novartes

Foi no livro A caverna, de José Saramago, que o personagem Cipriano Algor definiu seu genro Marçal como um homem ‘da raça dos desassossegados de nascença’. Logo, pensei ao ler, ‘eu também sou’, assim como você deve estar pensando, ‘me inclua nessa’. À raça dos desassossegados pertencemos todos, negros e brancos, ricos e pobres, jovens e velhos. Bem, desde que tenhamos duas características: a inquietação (que nos torna insuportavelmente exigentes conosco) e a ambição de vencer não os jogos, mas o tempo, esse adversário implacável. Desassossegados do mundo correm atrás da felicidade possível, e uma vez alcançado seu quinhão, não sossegam: saem atrás da felicidade improvável, aquela que se promete constantemente, aquela que ninguém nunca viu, e por isso sua raridade. Desassossegados amam com atropelo, cultivam fantasias irreais de amores sublimes, fartos e eternos, são sabidamente apressados, cheios de ânsias e desejos, amam muito mais do que necessitam e recebem menos amor do que planejavam. Desassossegados pensam acordados e dormindo, pensam falando e escutando, pensam antes de concordar e, quando discordam, pensam que pensam melhor, e pensam com clareza uns dias e com a mente turva em outros, e pensam tanto que pensam que descansam. Desassossegados não podem mais ver o telejornal porque choram, não podem sair mais às ruas porque tremem, não podem aceitar tanta gente crua habitando os topos das pirâmides e tanta gente cozida em filas, em madrugadas e no silêncio dos bueiros. Desassossegados vestem-se de qualquer jeito, arrancam a pele dos dedos com os dentes, homens e mulheres soterrados, cavando sua abertura, tentando abrir uma janela emperrada, inventando uns desafios diferentes para sentir sua vida empurrada, desassossegados voltados pra frente. Desassossegados têm insônia e são gentis, as verdades imutáveis os incomodam, riem quando bebem, não enjoam, mas ficam tontos com tanta idéia solta, com tamanha esquizofrenia, não se acomodam em rede, leito, lamentam a falta que faz uma paz inconsciente. Dessa raça somos todos, eu sou e só sossego quando me aceito.


A Raça dos Desassossegados, Martha Medeiros

sexta-feira, 18 de maio de 2018

“Quando eu dou algo, dou o meu ser” – Vincent van Gogh

Imagens do Filme:
Com Amor, Van Gogh
Se você acorda e sua sanidade escorre entre os dedos; se sua alma se debate entre tormentos e delírios, o que devo dizer? Qual a palavra exata para restaurar o que se perdeu? Entre papéis e rotina, o dia me surpreende investigando em que canto escuro você escondeu o que me sempre foi familiar e seguro. O gemido fere meus ouvidos, a cabeça sob o travesseiro consome o que me resta de esperança e me encolho de medo do seu monstro interno que vejo me espreitar, implacável. O que é esse grito lancinante que atravessa as paredes e me rouba a luz? E os ossos que querem se despregar da carne? Não, não desista ainda. Mãos torcidas, longas horas de sono, dor de viver, cansaço de vestir essa carcaça que oprime. Não fuja, não. Eu ainda estou aqui. Fixada nos seus olhos afogados investigo o que de você resta sob esses escombros. Não desista. Inquieta mente que cria abismos, traiçoeira mente que entre delírios e tintas se locupleta em sensações de prazer e dor, desespero e ardência. Uma fome infinita de sentir, de preencher a lacuna onipresente. Há algo de voraz em você; algo de devorador, que estende seus dentes pontiagudos para o nosso cotidiano. Tenho medo, sabe, mas ainda estou aqui, segurando a sua mão que treme. Em meio a essa tragédia surge a centelha intensa, a vontade insana, a obsessão violenta. Febre e volúpia, desejos, ardência e alucinação – leio tudo isso na sua alma inquieta. Dê-me as tintas, os pincéis e as telas! Estendo os pincéis quase em pânico, temerosa da avalanche, da raiva mal contida e do fluxo que arrebata. Mas não me afasto. Estou aqui. Ainda. Três prótons e três elétrons embalados em um cobertor prateado entram por sua boca, acumulam-se lentamente no seu sangue e estabilizam o que extrapolou a linha fina do que se chama razão. Eu espero. Tenha paciência: estou aqui. Mergulho nessa turbulência assustadora e seguro suas mãos contra meu rosto. Estou aqui: fique mais um pouco. Os dias se acumulam e estou tão cansada. De todas as expectativas só me resta uma: a que talvez este sonho mau um dia chegue ao fim e você, afinal, possa emergir para o sol. Neste dia, entre os dourados sons de meu amor, naquele lugar incrível que sonhamos, haverá calma, suavidade, serenidade e meu coração que aguarda, ansioso, pela hora em que afinal poderemos de novo olhar nos olhos um do outro. Sem sombras, sem medo. Estou aqui. Não vá ainda.



Fonte https://soniazaghetto.wordpress.com/

domingo, 6 de maio de 2018

...E tem a noite nos olhos, a jovem morena... __________________________ Rainer Maria Rilke

abril/2018
Os místicos e apaixonados concordam em que o amor não tem razões. Angelus Silésius, místico medieval, disse que ele é como a rosa: “A rosa não tem ‘porquês’. Ela floresce porque floresce.” Drummond repetiu a mesma coisa no seu poema “as sem-razões do amor”. É possível que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter lido, pois as coisas do amor circulam com o vento. “Eu te amo porque te amo…” – sem razões… “Não precisas ser amante, e nem sempre saber sê-lo”. Meu amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fossem assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus gestos de amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da terra. “Amor é estado de graça e com amor não se paga.” Nada mais falso do que o ditado popular que afirma que “amor com amor se paga”. O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te devo. Nada me deves. Como a rosa floresce, eu te amo porque te amo. “Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários… Amor não se troca… Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo…” Drummond tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados acreditam que o amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não estar apaixonado (o que é uma pena…), suspeito que o coração tenha regulamentos e dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem disse que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão escritas numa língua que desconhecemos. Destas razões escritas em língua estranha o próprio Drummond tinha conhecimento e se perguntava: “Como decifrar pictogramas de há 10 mil anos se nem sei decifrar minha escrita interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco.” O amor será isto: um soco que o desconhecido me dá? Ao apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a entender, o amor se irá. Como na história de Barba Azul: se a porta proibida for aberta, a felicidade estará perdida. Foi assim que o paraíso se perdeu: quando o amor – frágil bolha de sabão -, não contente com sua felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das suas razões. Kierkergaard comentava o absurdo de se pedir dos amantes explicações para o seu amor. A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio. Mas que se lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor – sem explicar. E eles falarão por dias, sem parar… Mas – eu já disse – não estou apaixonado. Olho o amor com olhos de suspeita, curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao contrário de Drummond, as cem razões do amor… Vou a Santo Agostinho, em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões, texto de um velho que meditava sobre o amor sem estar apaixonado. Possivelmente aí se encontre a análise mais penetrante das razões do amor jamais escritas. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia jamais fazer: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: “Que é que eu amo quando te amo?” Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois esta pergunta revela um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela. Nas palavras de Hermann Hesse, “o que amamos é sempre um símbolo”. Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa sobre a terra. Variações sobre a impossível pergunta: Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios…Como Narciso, fico diante dele… “No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura…” (Cecília Meireles). Por isto te amo, pelos peixes encantados… Mas eles são escorregadios, os peixes. Fogem. Escapam. Escondem-se. Zombam de mim. Deslizam entre meus dedos. Eu te abraço para abraçar o que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de os possuir. Tu és o lugar onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, sem razões, desceu sobre ti, como o Vento desceu sobre a Virgem Bendita. Mas, por ser graça, sem razões, da mesma forma como desceu poderá de novo partir. Se isto acontecer deixarei de te amar. E minha busca recomeçará de novo…Esta é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se recusa a saber que o rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o obscuro objeto do desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. “O amor começa por uma metáfora”, diz Milan Kundera. “Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética.” Temos agora a chave para compreender as razões do amor: o amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante pensou ver no rosto da amada…

– Rubem Alves, no livro “O retorno e Terno” (Crônicas). 27ª ed., Campinas|SP: Editora Papirus, 2008.