sexta-feira, 27 de julho de 2018

"Com as perdas, só há um jeito: perdê-las. Com os ganhos, o proveito é saborear cada um como uma fruta boa da estação." “A vida não tece apenas uma teia de perdas mas nos proporciona uma sucessão de ganhos. O equilíbrio da balança depende muito do que soubermos e quisermos enxergar.” ________________________ LYA LUFT

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos – para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos. Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido. Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo. Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: “Parar pra pensar, nem pensar!” O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação. Sem ter programado, a gente pára pra pensar. Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se. Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto. Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida. Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar. Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo. Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada. Parece fácil: “escrever a respeito das coisas é fácil”, já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado. Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança. Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for. E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer. 


– crônica ‘Pensar é transgredir”, de Lya Luft, do livro ‘Pensar é transgredir’. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além. __________________________________ Paulo Leminski

julho/ 2018
Tem dias que acorda tão ela mesma, que se assusta consigo. Levanta arrastada, forçando o pensamento a ser positivo e expulsando a preguiça que corre nas veias. A primeira pessoa que vê, ao acordar, é ela. Encara-se num espelho de dois metros de altura: rosto amassado, cheiro de sono, pele limpinha. Pés de galinha quando os olhos sorriem. Pijama. Amanhece mais dentro de si: sendo o que for, amando como quer, vivendo como deseja – sem o ensejo de querer agradar ninguém, salvo à si. É um tanto raro isso: acordar com olhos sorrindo. Dança enquanto a rotina desenrola. Arruma seus fios de cabelo, emoldurando-lhe a face. Pinta o rosto, sem querer se esconder de ninguém: a cor só ressalta os traços que o sono desenhou durante a noite. Não há corretivo que expulse os sonhos dos olhos. Não há máscara que esconda o que a noite esculpiu. Ela rodopia em frente ao espelho, feito bailarina descoordenada, sobre suas sapatilhas pretas. O azul tornou-se fiel companheiro de todos os dias. O relógio tiquetaqueia com a pressa de uma criança frente à um brinquedo novo muito colorido. O café esquenta o dia já quente. Risca o asfalto, olhando a volta. Olhando em volta. Olhando o tudo e o nada. Atualiza-se dos assuntos banais.  Abre o quebra-sol e se olha, e se ajeita e pinta a boca de cor de rosa. E está tão ela mesma, que se assusta consigo. Está tão ela mesma, que tem o riso nos olhos. Está tão ela mesma, que o relógio não assusta. Tão sendo ela e só ela e do jeito dela, que o mundo e os estereótipos e a sociedade, pouco importam.


Mafê Probst