sábado, 17 de novembro de 2018

"Ela foi colecionando, uma lista secreta de músicas românticas, para a eventualidade de aparecer alguém com quem possa ouvi-las e, quem sabe, dançá-las. Felizmente, há músicas que têm esse carácter das coisas eternas."

Gramado RS/ out 2018
Certa vez eu li uma crônica em que o escritor Mario Prata descrevia o desabafo indiscreto de um criado mudo — aquele móvel que fica estacionado num canto de um cômodo qualquer. Na referida crônica, o autor citava um episódio de mudança residencial em que o criado abandonou seu “status mudo” e ao cair no processo de deslocamento, escandalosamente revelou as intimidades que habitava seu interior: como lembranças particulares e nomes de alguns livros nunca lidos. Aparentemente, esta inofensiva peça detêm a função decorativa e/ou acumulativa. No meu caso, a função acumulativa sempre foi adotada e a última gaveta se tornou o destino certo para esconder minha nostalgia e calar a dor sentimental que insiste em — silenciosamente — fazer um estrondo no meu peito. Todas as minhas lembranças fotográficas daqueles anos foram endereçadas para aquele criado, antes mudo, agora desagradável e ensurdecedor. Ontem ele resolveu abrir uma de suas bocas — logo a boca que me faz sofrer — , jogando na minha cara cenas de muita felicidade. Descobri de forma trágica que sentimentos bons não tem prazo de validade e que a lembrança que tanto aflige é um bumerangue, que é lançado ao léu e quando menos se espera, volta com tamanha e assustadora intensidade. Lembrei das juras eternas que enfatizavam nossas conversas e não consegui encontrar o caminho no qual a nossa afinidade se perdeu. Cogitei a possibilidade de rasgar todas as fotos e destruir o maldito movelzinho, mas nossa história tem uma espécie de backup no meu cérebro, que não permite — por mais que eu queira — realizar nenhum tipo de alteração ou remoção. Já pensei em passar diante do seu portão e aguardar seu modo clemente me ofertar aquele abraço tão imaginado e esperado. Também cogitei inúmeras vezes a possibilidade de passar diante de você trajando todas as peças do meu orgulho, omitindo minha genuína tristeza e esbanjando um falso estado de superação. No entanto, tenho absoluta certeza das dores que irei sentir ao reprisar cenas de um passado, outrora mágico e arrebatador. Tentei transferir o conteúdo daquela última gaveta para um cofre secreto, trancá-lo com auxílio de um cadeado sem chaves e calar na base da opressão, memórias  de todo meu arquivo mental. No momento exato abriu-se a primeira gaveta, revelando boleto do cartão de crédito, guia de arrecadação do IPVA e IPTU e aquela gigantesca conta telefônica, prestes a atingir a data limite de pagamento. Neste instante percebi que não adianta ocultar sentimentos — independente da sua intensidade, forma ou origem — , mais cedo ou mais tarde eles vem à tona. Tento administra-los e mostrar a mim mesma que eles são o combustível que impulsiona a vontade de estar viva.

Maldito criado mudo, abrigo das dores ocultas.


Diego Augusto- Adaptado


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